segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

pitaco #16 - ana cristina cesar

Livro: Poética
Ano: 2013
De quem: Ana Cristina Cesar

Ana C. vivia de palavras. Sua construção poética é tão pessoal que eu tive a impressão de que, ao lê-la, seus amigos sentiriam algum tipo de incômodo por saberem tão fundo de alguém com quem conversam cotidianamente.


No decorrer do livro, percebi que me enganei: devia ser impossível "conversar cotidianamente" com Ana Cristina Cesar.


O livro é uma coletânea de suas obras já publicadas acrescida à um apêndice considerável, de uma forma que nunca havia sido publicado antes. Em vida, um livro foi oficialmente distribuído: A Teus Pés. Todos os outros eram entregues pessoalmente à seus amigos e colegas chegados, personalizados pela autora para cada um. E, alguns anos depois de sua morte, que ela mesma causou em 1983, foi encontrada na casa de sua mãe uma pasta cor-de-rosa, que deu origem ao livro "antigos e soltos: poemas e prosas da pasta rosa".

Em um dos textos do apêndice, Caio Fernando Abreu diz que Ana Cristina dá ao leitor a impressão de estar vendo a vida dela pelo buraco da fechadura. Caio, eu amo você, mas discordo: a impressão que tive foi de estar sendo assistida pelo buraco da fechadura.

No primeiro livro, tive um estranhamento. Como disse Rubem Alves: "uma coisa precisa fazer sentido para estar certa ou errada". Pra mim, no início, Ana C. não fez sentido algum. Ela usa as palavras de um jeito muito próprio e, até me acostumar com isso, levou umas oitenta páginas e dois livros (que eu voltei para reler assim que terminei a obra completa).


Daí pra frente, consegui emergir em sua poesia e me identificar com a sua prosa, também absurdamente poética - e foi uma experiência incrível. O domínio da autora com as palavras e a destreza com que ela constrói frases metafóricas e as mistura com sentenças claras e diretas é singular e diferente de tudo o que já havia lido. Ela usa as palavras com a propriedade que só se tem ao usá-las por muito tempo.


Gota a Gota, pág. 190 
Cada busca inútil me traz uma impressão longínqua de despedaçar-se: chegou-se a algum lugar, afinal, pois chegamos quando nos dispomos a continuar; mas a que custo! Seria talvez mais desejável para nós, gente, não chegar, achando quem sabe um último suspiro depois de um último passo.Cada noite que desce sobre uma espera vã traz-me à boca um gosto de vinagre, aos ouvidos um som qualquer que ensurdeça. Ninguém se disse adeus, e na ausência de luz alguém está morrendo sozinho.Cada vez que não morremos parece-me que demos mais um passo para trás, progredimos no sentido inverso, chegamos, pois que nos levantamos para prosseguir. E nestes dias de indolência, oco, ânsia oculta, uma sensação de interminabilidade sobe, sobe, pelas veias sobe. Nada. Esta falta de segredo é uma chegada, no seu verdadeiro significado: chegada é sempre escala; ponto para respirar; pela penúltima vez, quem sabe.Esta brisa marinha semimágica que entra tão sub-repticiamente pela janela denuncia o quê? ou liquefaz meus suspiros em mistério tátil e tácito. Meu Deus, de novo a brisa a me desalienar e desalinhar, despertando o borbulhar que o ano inteirinho pressentiu. Suspirosa e oleosa, uma tonta. Ligo o rádio. Será que eu fui engolida inteira? Faz de conta que a minha digestão é fácil, que as grandes partes se derreteram já, que os ossos cuspidos estão arrumados, insensíveis e ressecando. Ouvi dizer, li em algum lugar: Ana é idiota. Se conspirassem contra mim, talvez eu fosse. A noite despencou e quebrou três estrelas. 

Apesar de ter morrido cedo, Ana C. teve uma longa vida escrevendo. Começou a publicar poesias em jornaizinhos e criar seus livros ainda na escola. Nesta edição de "Poética", temos algumas digitalizações de poesias com notas de algum professor (A e 10, diga-se de passagem! rs).

(samba-canção, pág. 113)

Transgressora, forte, chocante: marginal. Ana Cristina carrega consigo todo o peso de uma geração presa em seus costumes e esbraveja liberdade em cada um de seus versos.

Conhecê-la foi uma honra.



Até a próxima, gentes! =)







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